domingo, 31 de julho de 2011

A fé que vem das quatro linhas

Maradona ultrapassa os limites do esporte, torna-se famoso, vira ídolo e, de repente, é considerado um deus, com direito a igreja, bíblia e dez mandamentos dedicados a ele


Quando se fala de futebol, logo se imagina duas equipes diferentes lutando acirradamente pela vitória de seu time. A primeira imagem que nos vem à cabeça é a da bola balançando o lado de dentro da rede. É o “gol”, o momento mais esperado de um jogo de futebol. Porém, poucos sabem que há muito mais a ser discutido sobre o assunto. Muito mais do que, simplesmente, o esporte jogado em si. Há, inclusive, uma contextualização antropológica profunda e que explica como o cidadão comum mantém sua fé e suas crenças nos dias atuais.

O esporte mais praticado pelo mundo todo nasceu na sociedade industrial e, desde então, exerce diferentes funções na vida das pessoas em geral. Uma delas, por exemplo, é a de ser uma alternativa sagrada, já que, segundo o pesquisador e professor de História Medieval da Universidade de São Paulo (USP), Hilário Franco Júnior, em seu livro ‘Dança dos Deuses’, “muita gente parece substituir as antigas divindades por clubes de futebol, pois há um vazio espiritual do mundo ocidental de hoje, cuja lógica é criar falsas necessidades às quais se devem aderir para contar com respeito social”.

Dessa maneira, entende-se com facilidade o que o professor quis dizer ao relatar que gestos religiosos, sejam eles ortodoxos ou não, cercam todo o ambiente futebolístico. “Os jogadores são ‘ídolos’, a camisa e a bandeira do clube, ‘manto sagrado’, os gols aparentemente e lógicos, ‘espíritas’, as defesas incríveis são ‘milagrosas’ e seus autores ‘santos’ ”, ressalta Franco Jr.

Assim como na religião, o futebol possui seu templo sagrado (estádios) no qual seus fieis (torcedores) se reúnem espontaneamente com a mesma função religiosa: orar pela mesma divindade, ou seja, torcer para o mesmo clube, evocando seus deuses em forma de cânticos (gritos e hinos do clube) e acreditando que uma força maior trará a boa sorte e a graça, enfim, será alcançada (vitória). Nesse momento, não há nenhuma barreira capaz de diferenciá-los sociologicamente. “Alguns vão ao estádio de automóvel e ficam nas numeradas, outros vão de ônibus e ficam nas arquibancadas”, é o que diz o professor.

Levando em conta que realmente o futebol é religião, é natural que haja comparações e reverências de jogadores, que são os principais personagens, a deuses. A imprensa e os próprios jogadores costumam fazer o papel de glorificar os melhores da profissão. Mas são os torcedores quem realmente endeusam seus ídolos.

Missa na Igreja Maradoniana
Na Argentina, por exemplo, a glorificação a Maradona, considerado pelo povo argentino o verdadeiro “deus do futebol”, excedeu a qualquer limite já visto na história.

No dia 30 de outubro de 2002, noite em que Maradona comemorava seus 53 anos de idade, amigos do ex-jogador, que viviam na cidade de Rosário, na Argentina, tiveram a ideia de fundar uma igreja para a consagração religiosa de seu deus. Sim, um templo exclusivamente dedicado a Diego Armando Maradona.

Para a celebração da nova religião, que nasceu do amor eterno de torcedores argentinos fanáticos pelo seu maior ídolo, a Igreja Maradoniana realizou uma cerimônia de lançamento conduzida pelos dois grandes amigos do craque, os jornalistas Alejandro Verón e Hernán Amez. Além deles, mais de 400 pessoas compareceram ao evento “religioso”.

A igreja "A Mão de Deus", como também é chamada, em alusão ao gol feito por Maradona contra a seleção inglesa, na Copa de 86, quando a Argentina foi bicampeã mundial, foi inspirada na Igreja Católica, e até tem os seus peculiares dez mandamentos. Um deles, e esse talvez seja o mais dos fervorosos ensinamentos da religião, é batizar os filhos com o nome de Diego. Já o Natal é comemorado no dia de aniversário de Maradona. Por incrível que pareça, existe uma Bíblia, cujas palavras são nada mais do que a própria biografia do ex-jogador.
Gol de mão feito por Maradona na final da Copa de 86
Rodrigo, que prefere não ter seu nome completo revelado por questões particulares, é um brasileiro de 32 anos apaixonado por futebol e que foi morar na Argentina em março de 2005. A princípio, quando chegou no país, sentiu um calor semelhante ao do Brasil no que diz respeito ao futebol. Percebeu, inclusive, que as pessoas também se reuniam em bares para ver os grandes jogos, dos campeonatos locais e do nacional, e que rojões também são estourados a cada gol importante.

Surpreendeu-se com o amor que os torcedores do Boca Júniors têm pelo clube do coração que, para ele, fez lembrar da torcida apaixonada do Corinthians. “Sou são-paulino, mas quando pisei pela primeira vez no estádio La Bomboneira parecia estar dentro de um caldeirão lotado de corintianos. Em certos momentos deu medo, confesso, mas depois me acostumei e até entrei na farra. O coração parecia vir à boca”, disse Rodrigo sem perder a oportunidade de exaltar seu time de coração. “Quando fui ao estádio Monumental de Núñes, assistir River Plate e Independiente, a sensação foi outra. O estádio é mais sólido, parece mais organizado, melhor estruturado, além de estar situado num local mais elitizado. Lembrou-me os tempos em que eu frequentava o Morumbi para assistir aos jogos do meu tricolor querido”.

Mas não foi a paixão dos torcedores do Boca e nem muito menos o clima caseiro e amistoso que sentiu no Monumental que deixou o brasileiro encantado. Depois de ouvir falar bastante sobre a Igreja Maradoniana, que tanto criticou aos amigos argentinos, seguidores da nova religião, Rodrigo resolveu conhecer o tal santuário.

Ainda a caminho do local, em Rosário, Rodrigo fez piadinhas e chegou a dizer que criar uma igreja para reverenciar um ex-jogador de futebol já era absurdo, principalmente por se tratar de uma figura pra lá de polêmica. Afinal de contas, Maradona já havia tido muitos problemas com drogas. Numa delas até ficou internado, correndo risco de morte. Mas, segundo Rodrigo, absurdo mesmo era alguém, sabendo de todos os “pecados” cometidos pelo ex-jogador, pisar num santuário como esse. “Antes de chegar ao local, comentei com um de meus amigos, seguidor fervoroso da tal igreja, que eu só poderia estar louco”, ressaltou.

Assim que o brasileiro chegou à frente da igreja, percebeu que algo a mais tinha no olhar daqueles fieis que, à porta, esperavam o início do culto. “Dava para perceber que não era apenas uma brincadeira, um simples fã clube se divertindo. O negócio era sério”.

Tão sério que um dos fundadores da igreja, Hernán Amez, em entrevista ao portal UOL, afirmou que Maradona é um deus vivo, presente de carne e osso, e não apenas de espírito, na vida das pessoas. “Nós podemos vê-lo na TV dando entrevistas, podemos ver imagens dele dentro de campo ou até mesmo escutá-lo no rádio, enfim, ele é um ser presente”, exaltou Amez.

A primeira pergunta que Rodrigo fez ao entrar na igreja causou certo nervosismo por parte dos fieis. “Para alguém ser considerado deus algum milagre teria de ser registrado. E foi justamente isso que perguntei a um deles”. A resposta, segundo o brasileiro, veio de um seguidor em tom áspero e nada amigável. “Ele (Maradona) provou ser um deus do esporte ao trazer o título mundial de 1986. Já Batista e Burrochaga (companheiros de Maradona na conquista do mundial) são santos, porque estiveram presentes no momento do milagre”.

O brasileiro ouviu os argumentos do argentino e permaneceu calado, pensativo. E embora não concordasse, respeitou a fé e a crença não apenas daquele que lhe deu a resposta, mas de todos os presentes naquela sala. Minutos depois, o culto deu início com uma oração dedicada ao “deus” Maradona. Rodrigo, mais uma vez, apenas observou de longe. Olhou nos olhos de cada um, inclusive de seu amigo que o levou àquela situação. No final, as pessoas se abraçaram umas às outras, como se fossem todos de uma só família.

“Fiquei um tanto quanto deslocado, mas pude sentir de perto o que é religião, o que é acreditar em algo, enfim, o que é, de fato, a fé. Cada um acredita naquilo que lhe parece seguro”, explicou Rodrigo, porém deixando claro que a sua fé continua no Deus criador do universo. “Para mim, Deus é um só. E é aquele que nos colocou no mundo, o criador de tudo isso que conhecemos como vida. Já no futebol, os hermanos que me perdoem, mas igual a Pelé, nem mesmo se tivessem nascido dois Maradonas”, sorriu.


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